segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Primeiras paradas: Minas Gerais

Em Minas, os leiteiros são nossos grandes companheiros. É impressionante ver como o rio desponta de um brejinho e se lança em cascatas gigantescas a poucos quilômetros de distância. O baita calor do interior nos deixou bem preguiçosos... e as muriçocas que não nos deixavam dormir? Nossa.... fogo!!!

1ª - São Roque de Minas – Ficamos hospedados na casa de Dona Joana, uma senhorinha que viveu na fazenda e em muito se queixava de não ter uma filha mulher por perto para a ajudar. Ela era a típica senhora mineira: cozinhava em fogão a lenha e fazia pães de queijo. Em sua horta, as verduras para consumo próprio; no linguajar, muito "uai, arriba, sô". Ela disse que nunca tinha ido conhecer a nascente do rio São Francisco, mas que falavam que era pequenininha. Transposição? Ela disse que talvez tivesse escutado algo, mas não sabia o que era. Dona Joana era uma pessoa muito interessante, com a pele morena e os cabelos grisalhos trançados, sempre com um avental e as mãos trêmulas.
Em São Roque começamos com as caronas primeiramente para conseguirmos ir às cachoeiras e à Serra da Canastra. Aliás, a Serra da Canastra é um lugar muito bonito que fica no alto de uma chapa com inúmeros animais e riozinhos. Lembro que um lugar que me marcou, além da nascente do rio, foi uma parada que fizemos. Lá no alto, há muitos campos com mato que, no fim do dia, parece branco meio prata com a luz do sol. Muitas pedras e pássaros... estávamos com a carona que passamos o dia e, resolvemos parar num lugar onde havia várias pedras formando uma espécie de círculo, lembrando ruínas de algo.
Fomos até as pedras para tirar fotos e observar a vista. Comecei a sentir uma sensação estranha, uma coisa pesada de sofrimento; me lembrei quase do mercado de escravos lá em Salvador e não gostei na energia do lugar. Foi muito estranho. Contudo, o dia transcorreu bem e visitamos a Casca D'Anta, uma cachoeira do São Francisco de 180m de altura. A força da água é incrível e as muriçocas assassinas.
Durante a noite fomos agraciados com um céu cravejado de estrelas, o que me lembrou este nosso desejo louco de luz e de céu. Ficamos na praça onde alguns jovens se aproximaram para cantar conosco. Enquanto o Marcelo tocava o "gostosinho" – esse é o nome do violão- todos cantavam.
Após deixarmos São Roque de Minas, iniciamos uma árdua rotina de caronas e afirmo: existe toda uma logística imbricada na arte de pegar carona. Pegamos uma carona com um leiteiro de Abaeté a Paineiras que parou para pegar o leite em uma pequena fazenda. Quando conversávamos sobre a falta de chuva, ele disse que esta falta iria influenciar muito no inverno: "para você tomar um picolé, depende de nós aqui da roça e das chuvas. O grande produtor também depende do pequeno produtor".
Pensar como estamos ligados neste ciclo de água, terra e céu é curioso. Enquanto isso, outro leiteiro que conhecemos falava da transposição do rio se dizendo a favor, porque a transposição, afinal, seria só no final do rio e era um desvio muito pequeno. Pensei depois comigo mesma: "se para chuparmos um picolé dependemos também da água na roça e, se as grandes empresas leiteiras também dependem do pequeno produtor, será possível que tirar um pouco d'água do leito do rio não traz impacto algum?"
2ª - Abaeté – Após algumas caronas, chegamos em Dores do Indaiá. Esta foi uma das caronas mais atípicas da viagem: carro grande e confortável com ar condicionado, um senhor (acho que era engenheiro) de Belo Horizonte nos deixou no trevo perto da cidade. Aconselhou-nos a subir para a cidade caso escurecesse e não conseguíssemos carona e, ainda insistiu em nos dar R$20,00 para comermos. Tivemos um certo constrangimento e recusamos; porém, diante da oferta e da insistência, acabei pegando. Chegando a Dores do Indaiá, além de ser caro para dormir, a cidade não agradou. É uma dessas cidades abastadas do interior. Resolvemos continuar de ônibus mesmo até o destino que havíamos escolhido: Abaeté. Cozinhamos um macarrão com direito a salada e tudo mais. Eu só conseguia pensar: "se minha tia acha constrangedor que eu coma comida dentro do ônibus (é, no ano passado eu fiz muito isso...), imagina se ela me visse cozinhando no chão da rodoviária e lavando as verduras no bebedouro!!!"
Após o jantar, um pouco de música na rodoviária e fomos a Abaeté. Por lá, o Marcelo conseguiu um lugar barato para ficarmos com um teatrinho de sermos hippies e fazermos apresentações. Assim, fomos à praça com violão, triângulo, fantoche e bexigas para assumirmos o papel.
Na praça, ainda a iluminação de Natal com presépio, famílias e árvores iluminadas com bolas de luz. Uma praça muito bonita mesmo! Parecia até que os homens tentavam imitar a luz do céu com aquelas bolas e luzes de Natal. Caminhando um pouco mais, toda a moçada da cidade desfilando em frente aos carros com música em suas melhores produções: mulheres para todos os lados. Por fim, nos sentamos e fizemos um forró com o chapéu estendido. Nada de trocados. Nem mesmo as bexigas de animais funcionaram... com o cansaço, nos rendemos e voltamos para a hospedagem. O Marcelo cogitou tomar banho e voltar para a praça. Eu fui dormir. Por fim, ninguém saiu.
3 ª Morada Nova de Minas – Esta foi a cidade escolhida para o Ano Novo. Nada como virar 2007/2008 a beira de uma praia do São Francisco! Entretanto, a festa ficou na praça mesmo e a praia era um pouco (muito) distante. Ficamos hospedados numa pensãozinha na beira da praça e lá conhecemos Maria José, mineira de meia idade magrinha que era louca por crianças embora não tivesse filhos. Ela nos contou sobre sua infância e seus "traumas". Incrível como tem palavras que pegam, né?! Quando nos despedimos, ela perguntou se voltaríamos. Respondemos que não sabíamos, pois o futuro... ela percebeu que não voltaríamos e se despediu. Falei para ela não se esquecer do acordeom (ela tinha um sonho de aprender) porque ainda dava tempo.
Eu me senti muito bem acolhida nesta pensão, como se morasse lá. Havia uma cozinha com o fogão no centro e aquelas mesas de madeira compridas para comer na copa. Fora, um quintal grande com um pequeno jardim e horta. O quartinho era miudinho e eu fiquei bem ao lado da janela (eu prezo muito mesmo lugares com janelas).Nesta cidade a impressão é que todos se conhecem. Gosto do clima interiorano onde todos se cumprimentam nas ruas... e todos percebem que você não é da região. Fomos visitar a tal da praia a noite logo no dia em que chegamos. Bem longe mesmo... chegando lá, um breu total e um longuíssimo caminho de terra contornado pelas árvores. O céu? Cintilante com milhares de estrelas. Quando chegávamos a praia, cachorros correndo e latindo. Virei e calmamente fui voltando. Acabamos parando no meio do caminho para contemplar os astros. Nesta pensão, também estava hospedada uma mulher de Três Marias com a filha. Ela me contou que estava perseguindo o marido porque não confiava nele (ele trabalhava vendendo bebidas e petiscos na balsa). Ela já havia sido traída várias vezes e para onde ele ia, ela corria com a menina atrás. As vezes conversávamos e ela me pedia para ajudar com a menininha. No dia em que íamos a praia, eu a convidei. No fim, desistiu por causa do calor e ainda me pediu uma saia emprestada. Eu acabei emprestando mas depois fiquei um pouco ressabiada, com medo de estar sendo feita de boba. Felizmente, meu anjo da guarda faz plantão e ela me devolveu.
No dia da virada o Marcelo fez um som na varandinha da pensão e eu fiquei com o pandeiro dançando. Foi muito divertido. Acredito que 2007 acabou como deveria: bem. O pessoal de lá vivia falando que éramos muito animados. Foi um pouco difícil deixar este lugar... mas tínhamos que seguir viagem.
As estrelas... Queria compartilhar uma reflexão: uma vez li que quando olhamos o céu a noite, o que vemos são apenas fósseis, pois o tempo que a luz demora para nos atingir na Terra, equivale a milhares de anos terrestres, o que implica em dizer: as estrelas que sempre nos serviram de guia, inspiração, enigma, são vestígios de algo que já foi.... mas ainda acreditamos e nos deixamos por elas guiar! Guiamo-nos por algo que vemos, sentimos, mas não está mais lá: eis o mistério da fé!
4ª Pirapora – Não gostei muito de Pirapora. O primeiro impacto do rio é maravilhoso: isto sim é que era praia de rio!! Mergulhei de roupa e tudo e o fim do dia foi muito gostoso. Lá, o rio já começa a ficar grandinho e com uma certa correnteza. Havia uma faixa grande de areia e já comecei a ver conchas (!!). Acho que foi em Pirapora que resolvemos falar que éramos primos. Já estava enchendo a paciência ficarem perguntando se não preferíamos um quarto de casal... Primos. Cheguei até a escutar que parecíamos irmãos... muito engraçado... A cidade era meio grande e não me senti muito bem. O rio era bacana e pudemos ver o último barco a vapor que navegava pelo São Francisco. Todavia, os passeios eram só aos domingos e estávamos longe disso. Mais uma vez passamos um fim de dia e partimos logo cedo.
5ª Januária – Neste caminho Pirapora/Januária, foi preciso fazermos um desvio por dentro para chegar à cidade, já que as cidades ribeirinhas eram de acesso muito difícil. Fomos até Montes Claros, a cidade intermediária e, tomando um sorvete. A sorveteira nos viu consultar o mapa de estradas e perguntou onde íamos. Estávamos decididos a parar antes de Januária, em Pedras de Maria da Cruz. A escolha era simples: não queríamos cidades grandes. A sorveteira nos aconselhou a ficar em Januária e nos falou de seu sogro que alugava quartos por lá. Neste ínterim, conseguimos carona com um homem que marcou: Celso. Ele fazia entregas em supermercados e possuía um próprio, Rede Flores em São João das Missões. Nesta época eu estava obcecada pela idéia de assistir a uma folia típica de Reis. Celso contou que em sua cidade havia uma folia muito tradicional que seu avô participava, mas não acontecia mais. Ficou nos contando suas histórias e que já havia morado em outros cantos; contudo, gostava mesmo de Minas Gerais. Este foi um dos caroneiros que mais gostei.
Já em Januária um grande brasileiro: Pirapora. Ele auxilia na implementação do ECA nos pequenos municípios, afirmando que as crianças e adolescentes tem que ser prioridade absoluta das políticas públicas. Ele tem um programa em CD e "cutuca" as prefeituras chamando-as para estas questões além de auxiliar na implementação do Estatuto. Ou seja: ele ensina, abre e dá caminhos. Bonito isso né?!!! E o mais incrível é que na infância ele foi morador de rua em BH. Uma pessoa que viveu o que faz. A experiência faz toda a diferença nos trabalhos (...)
Adorei a cidade de Januária: ribeirinha, tem boa infra-estrutura sem perder o clima interiorano. Lá achei muito curioso o fato das mulheres todas andarem de salto alto. E digo mais: andam de bicicleta com salto alto, saia e guarda chuva! Isto tudo sem perder o charme...Verdadeiras equilibristas.
O rio é bem grande por lá e fiquei com medo de entrar na água, sem contar que as muriçocas comiam soltas literalmente. Então preferi apenas contemplar o fim de tarde a beira rio. Durante a noite, assistimos na praça a apresentação de “Reis dos Marinheiros” muito divertida.
A procura do "agito", como diria o Marcelo, encontramos um forró num restaurante perto do rio e acabamos entrando para dançar. Os forrozeiros tocavam muito em São Paulo e acabaram nos aplaudindo. Pedi aos forrozeiros para tocar "Riacho de Navio" e "Vida de Viajante", músicas pertinentes a viagem. Foi emocionante escutá-las e ainda mais dançá-las. O lugar estava meio vazio e, os poucos homens que dançavam ficaram um pouco constrangidos de dançarem comigo porque dançavam diferente do modo como estávamos acostumados. Contudo, eu falei que não havia problema, pois me adaptaria ao jeito deles. E é isso que me apaixona no forró: dançar de vários jeitos com diferentes pessoas compassados na música regional. Eta trem bão!!!
6ª Itacarambi– Esta cidade é muito bonitinha e completamente infestada de muriçocas. O dono do local onde dormimos era uma pessoa áspera e, na tentativa de convencê-lo a nos deixar cozinhar em seu fogão que compartilharíamos a comida, ele respondeu:"eu não como nada porque sou hipertenso... mas a cachaça está sempre aí".Vejam se dá para acreditar... isto tudo porque ele nos contou depois que já havia tido um AVC. Ao me aproximar mais em conversas, ele queria nos ajudar conseguindo um lugar para cantarmos e tocarmos para fazermos dinheiro, já que tínhamos nos auto-denominado "hippies" com o violão, pandeiro e triângulo. Obviamente acabamos deixando a idéia de cantar de lado.
Posso dizer que as duas noites que estivemos em Itacarambi foram noites quase em claro para mim. Eu não conseguia dormir devido as picadas e sons das muriçocas e nunca desejei tanto que a noite terminasse... na primeira noite estava tocando forró na rua, o que me fez desistir de tentar dormir no calor e nos zumbidos me dirigindo para rua. Entrei no forró já no final e fiz algumas amizades. Quando finalmente senti um soninho, voltei para o quarto e cochilei um pouco.
Durante o dia, não havia muito o que fazer, mas lá tinha acabado de acontecer um terremoto em dezembro, o que em muito assustava as pessoas. Muitos moradores estavam abrigados em escolas e, logo ao lado, existe o Parque Nacional do Peruaçú.
Eu queria ter visitado estes locais onde estavam abrigadas as pessoas, assim como o projeto Jaíba, uma "micro" transposição do São Francisco considerada, na região, um grande sucesso para os pequenos agricultores. No entanto, o calor era tão forte durante o dia, e ainda por não estar dormindo direito, não tive disposição de ir atrás disso.
Tentamos conseguir uma autorização para ir ao parque, muito famoso pelas cavernas repletas de pinturas rupestres. Contudo, ao "conseguirmos" a tal da autorização, acabamos nos envolvendo numa história meio torta entre a filha do fiscal do Ibama e o guia, o que acabou nos levando a desistir por falta de tempo, além de percebermos que isto tudo não podia acabar bem.
O casal de pais do guia coordena grupos de terceira idade na cidade, além de encabeçar comemorações. Fomos super bem recebidos por eles que após uma conversa fizeram uma roda de música conosco e seus filhos e ensinaram a música do Rio São Francisco fornecida por Dom Luis Cappio, o padre da greve de fome. Sabe um comentário curioso que escutamos acerca da greve de fome? "Minha nossa senhora, com tanta gente sem nada p comer, este homem em tem do bom e do melhor e deixa de comer..."
Participamos com este casal de um festa de Reis na casa de algumas pessoas: foi lindo! No interior, durante o período de reis (depois do Natal até dia 06/01, aproximadamente), realizam celebrações em homenagem aos Três Reis Magos. Desta forma, algumas casas são visitadas pelos "reis". A casa fica enfeitada com uma lapinha e apenas as mulheres permanecem dentro da casa entoando canções para o Menino Jesus. Após um período, os homens entram na casa juntamente com a "banda". Ela é composta por alguns homens com sanfona, caixa, e outros instrumentos, representando a chegada dos Três Reis Magos. Após um pouco de festa dentro da casa e cantoria religiosa, se escolhe um local onde se possa fazer uma roda e todos dançam o samba, se alternando dentro da roda. Nunca vou me esquecer daquelas mulheres na reza, senhoras de idade avançada, pulando e virando felizes dentro da roda de samba no quintal. É uma alegria muito genuína.

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