segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A foz: ensaio de conclusão.

Finalmente navegamos pelo Velho Chico. Por todo o percurso, não o foi possível devido ao baixo nível do rio – falta de chuva. Sabem o que é ver nascer pequeno e grandioso se misturar ao mar? Nossa, me senti meio mãe neste fim.... Chamo a atenção para o fato do rio ter sua água salinizada já bem antes do encontro com o mar, assim como peixes marinhos.
Já na foz, subimos a duna mais alta para contemplar o encontro do rio com o mar e as dunas. Uma vista maravilhosa e única. Descemos e dei o derradeiro mergulho. Para fechar a viagem pelo rio, conseguimos uma carona de volta com o fiscal do Ibama da foz até Piaçabuçu. Ele nos levou por alguns canais do rio onde existem pequeniníssimas comunidades de pescadores. Parou nas dunas para observarmos os cajueiros e o encontro do rio com o mar novamente, nos mostrando seu “escritório” por entre as dunas.
Nas palavras dele, apenas alguns privilegiados adentram estes locais - e agradeci imensamente por ter sido um deles!!! Sem a menor dúvida, entrar pelos canais do rio foi a experiência mais marcante da viagem e uma das experiências mais marcantes da minha vida. Nestes canais, a mata ciliar está preservada e se observam mangues, caranguejos, árvores típicas, plantas e flores aquáticas. As pessoas? Vivendo em comunhão com o rio. COMUM – UNIÃO, COMO UM.
A sensação de comunhão nestes lugares foi indescritível. Quase como se entrássemos pelo túnel do tempo... comecei a pensar como teria sido a chegada dos portugueses a América. Como teriam se sentido os americanos? E os portugueses? Certamente este é um choque de tempos. Tudo respira neste lugar a um ritmo outro, muito aquém do meu. Pensamos como seria passar alguns dias numa comunidade daquelas e logo percebemos que seria quase como um estupro (tudo bem, exagerei...): é um choque de tempos, de vidas, de tudo! Entendi que o mais próximo que eu poderia estar era a distancia.
Muitas vezes para se estar próximo, é necessário distanciar, e este distanciamento é o maior ato de respeito que se pode ter, de amor. Muitas vezes, é na distancia que estamos próximos, no dar lugar a, e deixar ser, deixar estar.
Agora me distancio do Velho Chico tendo vivido a comunhão com o rio por um mês, quase 5 semanas e já tenho saudades.... mas estou segura desta ter sido uma experiência única na minha vida e que muitas outras virão.

Espero que tenham gostado, divulguem, visitem e se interessem pelo Rio São Francisco, afinal, nunca se sabe quando o sertão vai virar mar, ou o mar sertão... então digo: inventar, descobrir e redescobrir formas de se conviver com o que se tem, com o que se é, talvez seja a melhor solução!!!!!

Sergipe e Alagoas

A porção mais bela quanto a água e cidades ribeirinhas do São Francisco. Aqui, o rio é azulzinho e existem alguns morros ao redor. Para quem quer conhecer o lado histórico e mais propriamente turístico do Velho Chico, aconselho a ir para Paulo Afonso e de lá seguir Sergipe e Alagoas. Os lugares são inesquecíveis.

16ª Canindé de São Francisco – Canindé fica bem no alto de um morro e não tem muitos atrativos. Chegar ao Velho Chico implica em descer uma estrada. Lá foi onde vi as lavadeiras;contudo, agora elas lavavam a roupa em levadas d’água que foram formadas por um bombeamento através de ductos que sobem o morro. No final do dia em Canindé, subimos o morro após aproveitar a praia e pude assistir ao por do sol a beira do canal de água com o vento soprando forte. Foi muito gostoso.
A cidade é bem pequena e na nossa volta noturna encontramos uma movimentação perto de um grande circo armado. Quando chegamos ao local, um show: Alves Correia e as bundudas. Teoricamente seria um espetáculo circense acompanhado da divulgação do CD de forró do ex-político. Devido as vastas opções que tínhamos, acabamos indo ao show. Nunca fui fã de circos e este certamente foi o espetáculo mais bizarro que já fui. Piadas de humor negro com a população local e muito apelo sexual. Palhaço mesmo, era o que menos tinha. O show foi interessante, acho que principalmente para os homens, já que as 4 bundudas faziam a alegria do público. Realmente eram mulheres bonitas de corpo escultural. Valeu pela quebra na rotina.
No dia seguinte fomos a um passeio pelos Canyons do São Francisco no Xingó, por indicação de uma amiga psicóloga de São Paulo. Segundo o guia do barco, o maior Canyon navegável do mundo. Este foi o único passeio pago que fizemos durante a viagem. Quando chegamos no local de onde saia o Catamarã, eu me deparei com uma situação diferente: me senti à parte de tudo. Nunca me foi tão alheio um mundo do qual inegavelmente faço parte de algum modo. Olhava aqueles casais e famílias e não me encontrava em nenhum deles. Não me identifico com nenhum modo de ser daquelas pessoas e me senti deslocada e desconfortável.
Todavia, o passeio é realmente lindo e vale a pena pagar por ele. Após navegar um pouco, o barco pára no meio do azulão e os turistas nadam dentro do rio perto de algumas cavernas. Chegando ao lugar de parada, há uma imagem de São Francisco nas rochas; novamente me emocionei com a fé das pessoas. Durante o percurso, outra paisagem me prendeu: uma casinha isolada no alto do morro. Estas casinhas sempre me chamaram a atenção e, desta vez não foi diferente.
Conhecemos neste passeio um casal de amigos que estava a trabalho pelo interior levando uma programação de cinemas ao municípios. Este foi um trabalho promovido pelo SESC e o casal havia se conhecido na França. Os dois muito inteligentes e cultos. Tivemos conversas interessantes, mas ainda sim, não me conformo com a idéia de deixar o Brasil definitivamente. Ainda acredito que os profissionais qualificados deviam ficar para ajudar a construir melhores condições e valorizar o nacional.
Reparei que a própria desvalorização que estes mesmos profissionais sofrem, faz com que eles saiam do país em busca de reconhecimento e qualidade de vida. Entretanto, quando indagados acerca de seus esforços para com o Brasil, eles colocam que existe a possibilidade de ajudar o país estando fora dele, pois muitas empresas estrangeiras financiam projetos aqui. Particularmente eu não concordo com isso, pois a minha experiência me diz que o que precisamos é de pessoas dispostas e disponíveis a. E aí está a dificuldade: se disponibilizar para contatar o outro e escutá-lo, dar voz às necessidades deles ao invés de importar hábitos e necessidades. Eu acredito que isso é respeito e tenho certeza que é um desafio para vida toda.
17ª Piranhas – Descendo poucos quilômetros, fomos a Piranhas em Alagoas que é simplesmente uma pérola! Uma paisagem pictórica de cidadezinha colonial dependurada no morro enquanto rio azul corre por entre as montanhas. Sem dúvidas, uma das cidades mais lindas às margens do São Francisco.
Esta também foi por indicação de alguns caroneiros e de fato é gloriosa. Sabem uma cidade que foi construída subindo um morro? Esta é Piranhas Velha, que foi deixada um pouco de lado devido a construção de Piranhas Nova encima do morro. Isto se deve pela idealização de um projeto de barragem em Pão de Açúcar, outra cidade ribeirinha a poucos quilômetros. Caso isto acontecesse, a cidade seria inundada por uma represa. Desta forma, os habitantes de Piranhas construíram outra cidade a salvo da água. Como o projeto não foi concretizado (ainda bem!), a cidade antiga continuou a funcionar como pólo turístico principalmente. Perto dali, foi onde Lampião foi morto, na gruta de Angico. Na cidade há o museu de Lampião que, para nosso pesar, estava em reforma.
Acabamos não fazendo o passeio até a gruta, pois tentamos carona com um pescador e ele não ia pescar naqueles dias. Mas Piranhas ficou marcada como uma cidade linda, pequena e charmosa, ao som da escola de violão pertinho do rio que corre por entre os morros. Ele pode ser contemplado do alto de um mirante ou então no outro morro, onde se situa uma igrejinha. Na tarde que passamos na praia do rio, mais uma vez me percebi prostrada diante de uma casinha na outra margem do rio, já Sergipe. Lá estava um casebre no meio da terra seca.
Subimos o morro do mirante a noite para observar a vista e voltar a Piranhas Nova onde estávamos hospedados –obviamente, muito mais barato. Enquanto caminhávamos na escuridão, o Marcelo parou me perguntando de uma pedra laranja ao longe. Quando olhamos com mais atenção, lá estava a lua se erguendo laranja. Que emoção ver a Lua sendo confundida com uma pedra ocre... Apertamos o passo e fomos até uma casa em que se vendia picolé. Sentamos na calçada e saboreamos a Lua laranja com o picolé de goiaba.
No quartinho que ficamos em Piranhas os donos eram recém-chegados a casa e faziam questão de nos agradar. A mulher, uma professora no interior com uma menina e dois bebês gêmeos. Ficamos conversando sobre a vida enquanto lavava roupas e ela me contou de sua satisfação em lecionar na roça e sua vontade de terminar os estudos. É, ela não tinha terminado o ensino médio. Uma mulher encantadora e batalhadora. Após dois dias, acordamos cedo pela manhã para cumprirmos uma meta: chegarmos a Penedo.
18ª Arapiraca – Já tentando dar um salto até Penedo, sofremos um acidente de percurso: a carona mais perfeita (um caminhão de coco com água à vontade) que iria diretamente à Arapiraca – pertinho de Penedo, destino final do dia. Marcelo, na ânsia pelos cocos, pegou o canivete para os abrir e o objeto se fechou em seu dedinho. Não foi nada muito sério, mas no desespero do sangue, ele desmaiou e fomos a uma UBS logo no início da viagem. Vocês precisavam ver a cara do caroneiro... ficou super desesperado pedindo mil desculpas! Acho que ele não dará outra carona tão cedo...
Resultado: conversei com uma mulher em frente ao posto que ofereceu sua casa para passarmos o dia e a noite, se preciso enquanto ele se recuperava. Chegando lá, a casa bem simples sem água encanada. O Marcelo ficou descansando e por lá almoçamos. Enquanto ele se recuperava, fiquei a conversar com a mulher. Ela me contou das condições das pessoas naquele povoado de Piranhas, onde se vive em casas de pau-a-pique sem água e muitos noticiários vão mostrar a miséria. Lá, as pessoas vivem das bolsas do governo e cesta básica doada. Região paupérrima.... esgoto correndo pela rua e lixo por todo lado.
Estas pessoas precisavam se organizarem em programas de geração de renda, particularmente não acredito em assistencialismo. Diria que elas precisariam de uma organização para se identificar qual seria o potencial da região e delas mesmas, o que ocasionaria uma valorização de sua própria cultura e realidade, gerando uma atividade que gerasse renda, ao mesmo tempo sendo uma baita intervenção terapêutica. Realmente ser psicólogo por esta região está no entrar em contato e clarear demanda.... o resto está na articulação com governo e assistentes sociais. Como se falar em qualidade de vida, promoção de saúde para quem sequer tem o que beber e comer? Isso me fez pensar acerca dos limites e perspectivas profissionais.... Enfim!!! O Marcelo melhorou e fomos a Arapiraca.
Apenas passamos a noite por lá. O que foi muito bom foi finalmente encontrar verduras no supermercado. Vi um maço de espinafre e, apesar de caro, compramos para fazer uma boa sopa. Usamos o fogareiro com seu último suspiro e a sopa ficou ótima. Arapiraca é a segunda capital de Alagoas; ou seja, uma cidade grande. Já comecei a sofrer por antecipação o que seria minha volta à São Paulo e a rotina frenética. Mais uma vez tive a certeza que quero uma vida mais tranqüila e mais próxima a natureza.
19ª Penedo – Acabamos pegando uma van até uma cidadezinha próxima e paramos perto do trevo onde tentaríamos uma carona até Penedo. Um verdadeiro temporal começou a desabar e ficamos ilhados em uma padaria de esquina. Enquanto a chuva não parava, o “gostosinho” tornou a espera mais amena. Depois de algum tempo, seguimos na garoa até um ponto bom para carona.
Nestes momentos eu lamentava muito estar com aquela mala e invejava a do Marcelo, que tinha uma capinha que fica presa na parte inferior e você envolve toda a mala para não molhar... Felizmente conseguimos rapidamente uma carona com um homem e seu filhinho. Percebemos ao longo do trajeto o quanto Alagoas está dominada por plantações de cana-de-açúcar. Dizem que todas as plantações e usinas pertencem a umas 4 grandes famílias. Estas são as autarquias nordestinas...
Chegamos a cidade fantasma!!!! Essa foi a brincadeira com uma das cidades mais antigas de Alagoas – a Ouro Preto nordestina- abarrotada de casarões antigos e história. É uma cidade histórica muito bonita que já foi efervescente culturalmente (olha a riminha) mas que em pleno sábado a noite, as ruas estavam vazias. Talvez tenha sido pelo fato de outra cidade estar em festa... mas de qualquer forma, impressionante como me senti numa cidade fantasma de tão fazia que estava!
Em Penedo conhecemos uma das pessoas mais engajadas com a luta pelo rio São Francisco: Toinho, o pescador poeta. Fomos conhecê-lo pela indicação de uma amiga e outros que conhecemos em Piranhas. Ele é realmente fantástico! Falando sobre os impactos da transposição em relação a vazão de água, o quanto o rio está doente e sobre o assoreamento. Gente, é fato: assoreamento em todo lugar!! Desde Pirapora em Minas, até Piaçabuçu em Alagoas!!! Percebi que na divisa Sergipe/Alagoas, todo mundo fala de revitalização e é radicalmente contra a transposição, se referindo ao rio como "nosso rio..."
Toinho estava organizando um bloco de carnaval com uma marchinha contra a transposição, convocando o povo a luta. Declamou inúmeros versos acerca do Rio São Francisco, versos estes que se confundem com sua própria vida: uma pessoa que criou 9 filhos graças ao Velho Chico.
Nesta conversa, percebi uma coisa: qual era a parte que me cabia neste latifúndio. Qual era meu lugar nesta viagem e o quanto saber de onde se fala faz toda a diferença. Aquele homem vivia o rio e é esse o seu chamamento: compromisso com a sua própria existência. Isso é louco... e finalizou a conversa dizendo: "São Francisco vivo, terra, água, rio e povo". COMPROMISSO.
20ª Piaçabuçu – Acompanhamos a procissão fluvial e terrestre de Bom Jesus dos Navegantes em Piaçabuçu - mais uma comemoração típica da região. Após a procissão fluvial, a imagem é carregada por terra. Fomos seguindo junto com a população ao som de cantorias religiosas. A caminhada termina na Igreja com algumas leituras. Fazia muito tempo que eu não acompanhava leituras de textos bíblicos e foi marcante. Em sua mensagem, o padre proferiu paciência e esperança. Acho que realmente foram palavras pertinentes.
A noite aconteceria um show para fechar a festa. Fomos a praça e ficamos um pouco no primeiro show. Esperamos pelo forró que, pela demora, nos fez desistir. Voltamos para a pousadinha e fui dormir na esperança de conseguirmos carona para a foz do rio no dia seguinte.
Acordamos atrasados em relação ao horário combinado com o pescador. Fiquei extremamente preocupada com medo de não conseguir ir a foz. Para completar desabava um grande temporal e o Marcelo se gabava de já conhecer a foz de uma outra viagem dele. Temi não chegar lá. Felizmente, mesmo com a chuva, decidimos arriscar ir até o “cais” para tentar carona. O Marcelo se aproximou dos pescadores e começou a conversar. Conseguiu um que pediu que esperássemos. Com medo de não dar certo, ele falou com outro. Esperamos umas 3 horas e finalmente conseguimos a tão esperada carona. O dia era chuvoso assim como meu humor em relação ao fim do percurso.

Um pouco mais da Bahia e Pernambuco

13ª Juazeiro e Petrolina – Os caroneiros nos levaram para um “tour” perto de Juazeiro para vermos onde se localizava a famosa “Ilha do Rodeadouro”, point nos finais de semana. Já na cidade, nos deixaram próximos de onde seria o bairro da mulher que havia deixado o endereço com o Marcelo. Fomos a sua procura e encontramos a casa vazia. Caminhamos pela cidade que estava decorada para o pré-carnaval. Às margens do São Francisco paramos. Marcelo foi a procura de um lugar para ficarmos. Finalmente pousamos e a noite fomos ao Juafest. No dia seguinte, Petrolina.
Reparei que Petrolina é uma cidade mais abastada que Juazeiro. Visitamos alguns pontos e procuramos pela indicação de nosso amigo USPiano: Ilha do Massangano. Chegamos a falada ilha, embora contrariados pelos barqueiros que orientaram-nos a Ilha do Rodeadouro. Contudo, eu queria sossego, não badalação. Uma Ilha deserta com apenas algumas comunidades me pareceu muito mais atraente que uma Ilha cheia de música. Chegamos ao local e realmente estava deserto. Ilha do Massangano: a Ilha do Sol.
Pasma, esta é a palavra. A Ilha era simplesmente linda e o dia estava quente. Passamos a tarde inteira por lá. Enquanto o Marcelo tentava dormir com as formigas, eu nadei no São Francisco, rolei na areia e fiquei contemplando o rio do alto de uma árvore. Deixamos a Ilha do Sol com seu poente; e esta escolha quase nos rendeu ficarmos literalmente ilhados por lá: pulando, gritando e acenando com a canga que conseguimos ser apanhados pelo barqueiro.
Após, pegamos uma corona com um belga e, no meio da conversa, ele começou a falar que o povo brasileiro é egoísta e folgado, cada um por si. Quem me conhece, sabe que quieta eu não fiquei e comecei a argumentar falando de nossa questão histórico-cultural. Ele foi reticente dizendo que é uma questão de sangue índio.
Foi um dos meus grandes momentos de fúria. Entretanto, me contive; quase morri de raiva, mas tenho que admitir que realmente existe uma cultura do medo e do cada um por si. Não acredito que se pode descontextualizar as coisas e generalizar.
14ª Cabrobó – Quando chegamos a Cabrobó eu tinha a expectativa que conseguiríamos visitar o local onde será feita a transposição do São Francisco. Contudo, além dele ficar distante da cidade, o exército está de prontidão não só perto das obras, como na própria cidade. Ficamos apenas um dia e foi o suficiente para eu dizer que não gostei nada do que senti ou como me senti lá. Tudo está muito hostil e o exército me fez sentir como numa guerra silenciosa, onde a coerção desponta no silêncio. Não posso concordar com esta medida extrema. Quando cheguei a Sobradinho e Cabrobó, percebi o quanto é vital o rio nesta região semi-desértica. Não há limite entre céu cinzento e vegetação seca e não há verde senão dos cactos.
A cidade não é muito grande e possui uma feira de frutas e verduras muito vasta; é também local rodeado por inúmeras ilhotas no São Francisco, ilhas estas habitadas em muito por indígenas.
Faço aqui um desabafo: as vezes me inquieto com tamanha sofreguidão deste povo da seca e entendo o porquê desta ser a terra de Lampião e estas cidades serem tão perigosas. A lei do cangaço é a lei do facão. Muito comum as brigas familiares, mais parecidas com novelas, segundo um policial da região. Além disso, é chegar perto de alguém a contar causos e se abismar com a idéia que qualquer contrariedade pode resultar em morte. Esta é a lei: matar e morrer pela palavra.
Na seca as pessoas me pareceram mais desconfiadas. Contudo, não há quem negue um copo de água gelada em qualquer canto que passamos. Onde há gente, há oferta de água. Eles dão o que lhes falta, porque sabem que a água é o mínimo, além de ser também sua maior riqueza. Obviamente não só são flores... aliás, diria que são muito mais espinhos a flores! Enfim (...)
Conseguimos carona com um policial até o trevo de Floresta. Foi muito frutífera esta carona no sentido de informações e outro ponto de vista sobre o semi-árido. O policial nos contou sobre os treinamentos especiais para a região, criminalidade e brigas familiares. Inclusive soube que estávamos no centro do polígono da maconha. Incrível como esta é uma terra fértil para tal plantinha... curioso no mínimo... Bem, imaginem... sol das 13hs na cabeça no meio da caatinga. Ficamos com uma baita dor de cabeça pelo resto do dia. Finalmente conseguimos carona com uma van que iria até Paulo Afonso.
15ª Paulo Afonso– Quando passamos estas regiões, quase pensei ter uma miragem: perto já de Paulo Afonso existe a represa de Itaparica. Lá, o sertão é mar; e digo mais, mar azul e cristalino. Não há como não se emocionar diante da beleza do Velho Chico em cor azul, contrastando com o cinza do semi-árido. Dá para acreditar que a poucos quilômetros do leito do rio, as pessoas só tem água por meio de caminhão pipa? A Ilha de Paulo Afonso é uma pérola do sertão: lá, o mar doce do São Francisco abraça o sal do semi-árido. Fiquei simplesmente encantada com a cidade.
Fiz duas amizades em uma casinha de jogos. Conhecemos o famoso Caldinho de Paulo Afonso e é realmente gostoso. No dia seguinte, fomos a praia nos refrescarmos. Neste momento aconteceu um fato muito inusitado. Enquanto tentava dormir na areia, o Marcelo chama “Maíra”. Olho e surpresa: eis o terceiro elemento de nossa viagem caminhando na beira da água com outra menina.
Isto mesmo, a outra Maíra. Apesar de ainda inconformada com o sumiço repentino de nossa conterrânea, fiquei felicíssima de reencontrá-la. Ela nos apresentou sua companheira de viagem e conversamos sobre diversas coisas. Foi maravilhoso esclarecer algumas coisas e poder conversar com outras pessoas. No dia seguinte seguimos viagem e deixamos a ilha. A carona foi muito pertinente a região: caminhões pipa.

Bahia: maior trecho

Existe uma nítida diferença entre o centro oeste e o norte de Minas, assim como da Bahia: as feições vão mudando e as paisagens vão secando. A pobreza também aumenta...
O Rio São Francisco é mágico e suas águas mudam muito ao longo do trajeto, inclusive as vegetações e as pessoas que habitam suas margens.
Se em Minas, perto da nascente, o rio possui uma cor parecida com um chá mate, já na Bahia as águas estão totalmente barrentas, se confundindo com as terras que o circundam.
O trecho bahiano é o mais extenso e onde os acessos são quase impraticáveis. Estradas muito mal cuidadas e de alta periculosidade. Muitas cidades pequeninas e pobres; um povo muito hospitaleiro e alegre. A seca e a pobreza são grandes mesmo as margens do rio.

7ª Malhada – Geralmente existe um barquinho que faz a ligação Manga/MG – Malhada/BA. Mas como a época de chuvas não estava para peixe e o rio ficou bastante seco, o percurso estava sendo feito apenas de carro, ou melhor dizendo, pau-de-arara. Antes de optarmos pelo transporte, fizemos uma tentativa de carona de Manga a Carinhanha. Enquanto andávamos em pleno sol das 11hs pela cidade com nossas “pequenas” mochilas e sacolas pedindo orientação sobre a estrada que ligava os dois trechos, fomos advertidos inúmeras vezes que ninguém ia para Carinhanha ou Malhada por este caminho. Teimosos, insistimos. Chegando ao suposto ponto de ônibus, roceiros esperando o ônibus das 15hs até um vilarejo próximo. Com estas pessoas tivemos a confirmação: Malhada e Carinhanha só atravessando o rio e indo de carro. A tal da estrada só ligava até o vilarejo devido a sua precariedade. Ninguém fazia o trecho completo. Finalmente vencidos, nos sentamos a sombra da árvore por alguns instantes.
O Marcelo pegou o violão e começou a tocar. Pedro, um roceiro ao lado, puxou conversa e logo disse que tinha um violão na roça e estava aprendendo algumas músicas. Ele pegou o “gostosinho” e começou a tirar músicas sertanejas cantando alto. O mais engraçado foi que Pedro tinha apenas 2 dentes na boca e usava um chapeuzinho. Ele berrava tanto que todos no ponto de ônibus se entreolhavam com ar de deboche. Mas querem saber o que eu realmente acho disto? Que baita homem corajoso!! Ele não estava nem um pouco preocupado com o que estavam pensando de sua cantoria e cantava tão profundamente do seu jeito, que seus olhos se fechavam de satisfação. Ele sabe quem é e o que pode ser e não se constrange ao olhar dos outros: ele faz.
Finalmente atravessamos o barquinho. Porém, até chegar lá, pegamos uma carona numa charrete. Numa puxada de conversa, diante da pergunta: “o que você faz?”, recebemos uma resposta inoportuna: “faço isso mesmo, fretes!”. No momento, eu pensei: “F... “ E rapidamente o Marcelo arrematou:”E nós somos caroneiros!”. Quando chegamos ao local do barco, descemos da charrete e a grande cara-de-pau: o teu nome estará no nosso livro constando que você contribuiu com a viagem dando carona!”. Eu nem olhei para o homem, apenas fui andando.
Quando já eram 14hs da tarde saímos encima do pau-de-arara aberto empuleirados com mais uns 15 rumo Malhada. Eu já começava a me irritar com a demora, o sol na cabeça e as crianças quase caindo de dentro da caminhonetezinha por dentro das fazendas. Um trecho sem estradas, menos de 100km em 5 horas... só imaginem. O céu começou a escurecer e pensei que talvez chovesse. Até que torci para tanto, mas acabou ficando só para a noite. Foi muito bom ter feito este trajeto na caminhonetezinha. Fiquei observando os fazendeiros nas lavouras e as cisternas em todos os cantos. Eu gosto muito deste estilo de vida campestre, mas acho que hoje em dia não me adaptaria mais... no entanto, sempre admiro quem o faz e confesso que as fazendas, o cuidado com a terra sempre me chamaram a atenção.
Em Malhada, a hospedagem mais barata: R$5,00 com direito a usarmos o fogão sem rodeios, assim como roupa de cama limpinha. Foi uma das minhas melhores noites de sono (também, estava exausta!!). Antes de dormir, andamos pela cidade e participamos da primeira festa de bois. Foi muito divertido: as crianças correndo do boi na rua enquanto um grupo de jovens tocava batuques e cantava a música do boi. Eu mesma corri do boi pela rua. Divertidíssimo ver as pessoas na rua se sorrindo e se misturando uma com as outras.

8ª Bom Jesus da Lapa - Tivemos que pegar um ônibus de Malhada à Bom Jesus da Lapa. Devido a precariedade das estradas, poucos carros circulam neste trajeto. Durante o caminho e povoados que passávamos fiquei pensando: uma região muito pobre e desolada este sudoeste bahiano, com mulheres andando na rua com baldes na cabeça até as torneiras públicas e cisternas. Naquela terra seca, comecei a me lembrar do livro de Graciliano Ramos, Vidas Secas. Será que estava romanceando demais? Sei lá... Perdida por entre devaneios, após longo período, avistei a ponte sobre o Rio São Francisco e dei um pulo: um enorme arco-íris despontava no horizonte. Rapidamente acordei o Marcelo que logo se levantou para observar a paisagem: aquele arco-íris só podia ser um presente. Era o que faltava para concluirmos que realmente o Velho Chico é mágico e mesmo nas regiões mais inóspitas sempre existe riqueza.
Visitamos a gruta em Bom Jesus no dia seguinte e afirmo que este é mesmo um santuário divino. Não sei explicar, mas entrar na gruta foi uma experiência marcante e vagarosa. Para ser mais clara digo: entrei devagar na Gruta porque senti uma força que me fez ter cautela e paciência. Dá para sentir a fé dos romeiros em cada pedra que se toca, em cada gota d'água que atinge o chão. Vale muito a pena conhecer este local.
Saindo de Bom Jesus, pegamos algumas caronas rumo à Xique-xique, destino escolhido. Fomos até uma cidade próxima e lá, na convicção de pegarmos outra carona mesmo diante dos alertas da dificuldade, ficamos um bom período num trevo completamente deserto em pleno sol das 13hs. O sol era a pior parte dos dias de carona. Por fim conseguimos uma com ônibus do MST até um vilarejo no meio do caminho. Conversamos com a representante e ela nos falou que teriam um encontro no dia seguinte na cidade donde acabávamos de sair. Eu me animei muito para ir conhecer o acampamento, mas decidimos que devíamos tentar seguir caminho para próxima cidade, ou então, não terminaríamos a tempo o percurso.
Descobri nesta conversa que o MST é um movimento super organizado e que eles não saem invadindo qualquer área; existe todo um estudo do local antes. Admito que não sei nada ainda sobre a questão da divisão de terras, reforma agrária, terras produtivas (só o que aprendi nas aulas de geografia). Mas depois desta carona e de ver o quanto as brigas entorno da questão da transposição giram sobre a divisão de terras, fiquei mais atenta e interessada neste assunto.
9ª Barra- Conseguimos finalmente uma carona para sair do povoado de Igarité já no final do dia. O caroneiro ia à Irecê e nos deixaria em Xique-xique. Contudo, nos falou muito da cidade de Barra e de seus atrativos, nos convencendo a mudar o destino. Chegamos em Barra e logo procuramos um lugar para ficar e alguém que nos orientasse para falarmos com o bispo da greve de fome, já que esta era sua cidade.
A Barra é uma cidadezinha ribeirinha agradabilíssima, com um calçadão na beira do rio d’onde se avista o encontro das águas barrentas do São Francisco com as águas negras de um outro rio (sou péssima para guardar nomes...). As águas se misturam gradativamente, fazendo deste encontro uma cena bonita de se ver.
Conhecemos o bispo da greve de fome no dia seguinte após agendarmos com Zé do Maninho. Ele nos contou que havia realizado esta viagem só que ela tinha durado 1 ano e todos os municípios ribeirinhos tinham sido visitados. Assim que chegamos, também havia o secretário do Meio Ambiente da Bahia a espera do bispo para convidá-lo para 14ª Conferência do Meio Ambiente na região. Infelizmente o bispo colocou que não poderia ir. Entre uma conversa e outra, um telefonema e outro, fiquei conversando com o secretário e expondo meus planos com a população do semi-árido nordestino. Acabamos trocando contatos e já nos correspondemos por email.
Conversamos por alguns instantes muito breves com o bispo (acreditem: ele tem a agenda lotada até 2009). Teve uma fala dele que muito me tocou quando o questionei acerca da luta pelo rio. Ele disse:"se um dia você vir a morar nesta região, você entenderá que o rio é a vida destas pessoas; desta forma, viver às margens do São Francisco implica em se envolver pela luta do rio". Percebi que a nossa luta ganha força quando ela nasce de nosso cotidiano, da própria vivência de mundo.
Também em Barra acompanhamos um Rei de Boi muito bom: existia um mais tradicional e outro onde alguns animais diferentes se incluíam. A folia percorria toda a cidade com adultos e crianças cantando e fazendo roda ao redor dos artistas de rua. Aprendi alguns novos personagens folclóricos: Luis Caipora, Macaco Gongo e Canguçu. Ainda não sei ao certo de que histórias surgiram, mas ainda descubro...
Definitivamente durante o horário do almoço (das 10:30 as 14:30h) não se pode ficar nas ruas. O calor é extremamente intenso e o sol castigante. Numa das tardes acabamos dormindo neste horário (como a maioria o faz) e advinhem o resultado? Fome. Quem iria se dispor a levantar para ir até a tal da barraca perto da rodoviária fazer o almoço? Pois bem, acabei indo espontaneamente.
Chegando a barraca, primeiro a difícil tarefa de convencer a mulher a me deixar cozinhar. Ela acabou cedendo. Nunca senti tanto calor. Dentro de uma barraca de madeira às 14hs em frente a um fogão enorme. Eu podia sentir o suor escorrendo pelas minhas pernas enquanto cuidadosamente eu mexia na panela o macarrão. O engraçado foi que a mulher começou a conversar comigo e descobri que ela também já havia morado em São Paulo, afirmando:”o tempero dos paulistas é muito bom! O que é que você está colocando neste molho?” Depois ficou perplexa com o fato de estar viajando pelo interior dizendo:”e a sua mãe?” Sabem de uma coisa? As pessoas me perguntaram muito mesmo sobre a opinião de minha mãe. Achei isto curioso, pois é quase como se eu fosse criança, ou se eles me olhassem imaginando uma filha.
Outro lugar maravilhoso entre Barra e Xique-xique é o Encantado. Simplesmente um oásis no meio do “nada”. Em um local montanhoso no meio da caatinga pedras que reluzem ao longe. É uma região de garimpo de cristais, dando uma coloração cinza brilhante as montanhas. O Encantado é uma piscina natural de água límpida circundada por paredes rochosas. Todavia, quando se olha da estrada adentro só é possível enxergar areia seca, lagartos e cactos esparsos.
Os 3 quilômetros da estrada até o Encantado mais parecem 30 quilômetros quando se coloca os pés com chinelo na areia fofa. Enquanto voltávamos de lá, reparei nos vestígios da última enchente do Velho Chico: pontes derrubadas e desvios improvisados na estrada. O resultado do que deveria ter sido refeito há 1 ano e não foi: desvios. Fiquei me questionando: até quando iremos desviar da estrada ao invés de reconstruí-la? Será realmente mais fácil, menos dispendioso? Sempre escutei que a emenda é pior que o soneto; deste modo, volto a me questionar: até quando iremos desviar caminhos ao invés de (re)construí-los?
10ª Xique-xique – Esta foi uma cidade que eu não gostei muito; apesar de ser ribeirinha, o “cais” é um lugar de comércio de pescadores, cheio de canoas atracadas. Na areia, pode-se observar algumas barracas de venda de bebidas e moringas de barro de todos os tamanhos. O rio já é enorme assim como as ruas da cidade. A grande atração local é um parque aquático aberto aos domingos e feriados.
Fomos a Xique-xique com a mesma carona que conseguimos voltar do Encantado no dia anterior: dois bahianos que fazem transportes para mercadinhos; um de Salvador e outro de Feira de Santana. Foi muito divertido pegar carona com estes dois homens que nos falaram sobre sua opinião acerca do rio e das estradas, assim como faziam muitas brincadeiras entre si envolvendo o caminhão e o pavor do motorista em pegar balsas no caminho. Durante o percurso de Barra à Xique-xique, cantando músicas sertanejas a quatro vozes.
Sabíamos que de Xique-xique estávamos ilhados, pois de lá só existe estrada sentido Irecê, o que desvia muito do rio e nos obrigaria a rodar cerca de 400Km fora da rota pulando a represa de Sobradinho até Juazeiro. Estávamos com o tempo apertado e muito excitados com a possibilidade de conhecer as cidades da represa: Remanso, Sento Sé, Pilão Arcado, Casa Nova e Sobradinho; as cidades inundadas pelo Rio e entoadas no forró de Luís Gonzaga. Estávamos em Xique-xique num domingo e descobrimos que os barcos pesqueiros iriam apenas quinta ou sexta para Pilão Arcado. Fomos aconselhados a esperar pela segunda-feira e conversarmos com um pescador que geralmente faz esta viagem em outros dias.
Chegando segunda-feira, conseguimos ajuda para encontrar o pescador, mais conhecido como Reizinho. O modo como os outros pescadores se referiam ao dito cujo já me colocaram com um pé atrás (o que vindo de mim, é bem raro de acontecer). Quando o conhecemos, o estereótipo do bahiano arretado do interior: moreno baixinho e “atarracado”. Falou que iria de carro, após o almoço, até Sento Sé. Pedimos por carona e ele disse:”o que vocês querem dizer com carona?” Logo o Marcelo respondeu:”que nós vamos com vocês!”. Ele olhou desconfiado e combinou de nos encontrarmos em frente sua casa às 14hs.
Ficamos a tarde inteira esperando e nada. Um grande entra-e-sai na casa e um calor enorme. Acabei me entretendo com as duas filhas do pescador, contando histórias e fazendo palhaçadas até o momento que já não agüentava mais.
11ª Sento Sé – Perto das 19hs saímos com Reizinho dentro do carro cabine dupla. Pensem: um dirigindo, eu e o Marcelo e Reizinho numa cabine dupla. Esta foi a única carona que tive medo. Não sei dizer, mas não consegui confiar no pescador. Ele, com a feição e fala rudes, me intimidavam e me deixavam insegura. O Nego, homem que dirigia, sequer dizia uma palavra. Previsão de 7 horas de viagem por entre fazendas e nós completamente “socados” dentro do carro. Sabem virada sincronizada? Pois bem, este foi o treino: se o Marcelo se virava para direita, eu também tinha que me mexer; se um pé ficava por cima, o outro ia por baixo... e assim, sucessivamente. Fomos seguindo caminho na escuridão da noite sem nenhum sinal de estrada. Dividimos nossa pequena provisão de alimento com os outros dois do carro, pois a fome apertou e não havia onde parar para comer. Este foi um verdadeiro rally noturno. Num determinado momento, o sono e o cansaço estavam grandes e continuávamos rodando pela meio do nada. Várias vezes o Nego se perdia no caminho e parecia que estávamos rodando em círculos. Não consigo entender como eles conseguiam saber por onde andávamos naquele breu. Quase meia noite e ainda tínhamos cerca de 2 horas pela frente até Sento Sé. Comecei a ficar preocupada caso chegássemos lá na madrugada: onde dormiríamos? Imaginei que esta seria nossa primeira noite na rua mesmo. Por sorte, após alguns minutos, nossos caroneiros pararam num pequeno vilarejo para dormir na casa de um amigo. Quando paramos, estava uma ventania muito forte e agradável na vilinha. Eu tive uma sensação boa e quase foi como se estivéssemos numa vilinha de pescadores cenário de novela.
Estendemos rede e saco de dormir no chão da casa do amigo e dormimos até as 6hs da manhã. Durante a madrugada, só sentia ser sacudida e acordava desnorteada pensando que era a hora de levantar. Levantamos e entramos na cabine dupla, agora mais folgados: Reizinho e o amigo foram na caçamba. Logo chegamos a Sento Sé e ficamos na praça. Procuramos pelo “cais” e, chegando ao suposto lugar, nada de barcos.
Fiquei extremamente mau-humorada e irritada por todo aquele esforço inútil. Eu queria muito mesmo ir a Remanso, mas não tinha como: só se esperássemos mais 3 dias, o que certamente atrasaria muito a viagem. Fiquei alguns minutos contemplando a represa de Sobradinho ali de Sento Sé: tive a impressão de estar numa Ilha a beira rio. Lá o São Francisco é mar, e suas águas se confundem com as montanhas ao longe de tão barrentas. Foi linda a paisagem que vi: milhares de raízes e tocos de árvores despontando da água em sinal de baixa do rio. Não tinha limite entre rio e terra e a outra margem era lenda: “A terceira margem do rio” (...)
Milhares de conchas perto do Velho Chico e uma espécie de pasto as margens. Nesta cidade, não há comércio ou coisa alguma na beira do rio; é quase como se fosse um pasto por uma longa extensão. Não gostei da cidade de Sento Sé em si; resolvemos seguir viagem; definitivamente, não queríamos perder mais um dia lá. Esperamos pela van que iria até Sobradinho dormindo na beira da estrada.
12ª Sobradinho – Dentro do ônibus até Sobradinho, conhecemos um historiador da USP que estava viajando pelo interior nordestino. Inusitado encontrar alguém do mesmo círculo acadêmico em Sento Sé. Em uma das paradas a caminho da cidade, descemos do ônibus e cantamos duas músicas, Marcelo no violão e eu no triângulo: “O Sertão vai Virar Mar” e “Petrolina e Juazeiro”. As pessoas gostaram bastante e comentaram. Chegamos a Sobradinho com um endereço na mão para ficarmos quando fossemos a Juazeiro. Pedindo uma indicação de lugar a outra senhora que desceu conosco do ônibus, recebemos um convite de ficarmos em sua casa. Logo aceitamos e coloco que fomos extremamente bem recebidos em sua casa. Chegamos e logo nos debruçamos sobre as duas árvores de acerola no quintal de Maria de Lourdes. Ela nos serviu lanche e janta, sempre atendendo a pedidos, como bejú e cuzcuz.
Na manhã seguinte ela nos conseguiu 2 bicicletas emprestadas e fomos pedalando até a barragem de Sobradinho. Simplesmente enorme. Como a porta estava aberta e não tínhamos agendado visita, entramos. Foi interessante conhecer o tamanho da barragem e o famoso elevador que ascende os barcos (quando estava funcionando).
Voltamos a casa de Dona Lourdes e arrumamos as coisas para partirmos rumo a Juazeiro. Ela nos ofertou almoço e saímos empanturrados de sua casa. A cidade de Sobradinho se resume basicamente a uma avenida principal e várias perpendiculares que, a partir da quinta rua já não tem asfalto. As pessoas reclamavam muito dos políticos e suas promessas e foi possível ver muito lixo pelas ruas, visão que me impressionou.
Na estrada, a espera de carona, conseguimos com uma saveiro na carroceria. É muito bom pegar carona na caçamba e sentir o vento no rosto. Os caroneiros nos alertaram que antes de seguirem a Juazeiro, passariam em uma roça. Ótimo chegar mais perto do cotidiano das pessoas. Na roça, mulheres colhendo e muitas crianças brincando em frente a casa com uns pedaços de madeira nos observando ao longe. Quando deixamos a roça, percebi a região fatigada pela seca. Como seria cultivar uma terra tão pobre?
Quando cruzamos a represa de Sobradinho, o maior contraste é o da vegetação: o semi-árido às margens do mar. Bem que a música já prega que o sertão ia virar mar... a dúvida que resta é: será que o mar virará sertão?
Estive perplexa com as questões ambientais; as pessoas todas falam de revitalização do Rio São Francisco, de plantar mata ciliar, da natureza, da água... e estas mesmas pessoas são as primeiras a jogarem seus papéis, latas e sacos pela janela. É absurda a quantidade de lixo que encontramos ao longo do rio em suas margens. Tem cidades que mais parecem lixões a céu aberto e isso tudo é muito triste.

Primeiras paradas: Minas Gerais

Em Minas, os leiteiros são nossos grandes companheiros. É impressionante ver como o rio desponta de um brejinho e se lança em cascatas gigantescas a poucos quilômetros de distância. O baita calor do interior nos deixou bem preguiçosos... e as muriçocas que não nos deixavam dormir? Nossa.... fogo!!!

1ª - São Roque de Minas – Ficamos hospedados na casa de Dona Joana, uma senhorinha que viveu na fazenda e em muito se queixava de não ter uma filha mulher por perto para a ajudar. Ela era a típica senhora mineira: cozinhava em fogão a lenha e fazia pães de queijo. Em sua horta, as verduras para consumo próprio; no linguajar, muito "uai, arriba, sô". Ela disse que nunca tinha ido conhecer a nascente do rio São Francisco, mas que falavam que era pequenininha. Transposição? Ela disse que talvez tivesse escutado algo, mas não sabia o que era. Dona Joana era uma pessoa muito interessante, com a pele morena e os cabelos grisalhos trançados, sempre com um avental e as mãos trêmulas.
Em São Roque começamos com as caronas primeiramente para conseguirmos ir às cachoeiras e à Serra da Canastra. Aliás, a Serra da Canastra é um lugar muito bonito que fica no alto de uma chapa com inúmeros animais e riozinhos. Lembro que um lugar que me marcou, além da nascente do rio, foi uma parada que fizemos. Lá no alto, há muitos campos com mato que, no fim do dia, parece branco meio prata com a luz do sol. Muitas pedras e pássaros... estávamos com a carona que passamos o dia e, resolvemos parar num lugar onde havia várias pedras formando uma espécie de círculo, lembrando ruínas de algo.
Fomos até as pedras para tirar fotos e observar a vista. Comecei a sentir uma sensação estranha, uma coisa pesada de sofrimento; me lembrei quase do mercado de escravos lá em Salvador e não gostei na energia do lugar. Foi muito estranho. Contudo, o dia transcorreu bem e visitamos a Casca D'Anta, uma cachoeira do São Francisco de 180m de altura. A força da água é incrível e as muriçocas assassinas.
Durante a noite fomos agraciados com um céu cravejado de estrelas, o que me lembrou este nosso desejo louco de luz e de céu. Ficamos na praça onde alguns jovens se aproximaram para cantar conosco. Enquanto o Marcelo tocava o "gostosinho" – esse é o nome do violão- todos cantavam.
Após deixarmos São Roque de Minas, iniciamos uma árdua rotina de caronas e afirmo: existe toda uma logística imbricada na arte de pegar carona. Pegamos uma carona com um leiteiro de Abaeté a Paineiras que parou para pegar o leite em uma pequena fazenda. Quando conversávamos sobre a falta de chuva, ele disse que esta falta iria influenciar muito no inverno: "para você tomar um picolé, depende de nós aqui da roça e das chuvas. O grande produtor também depende do pequeno produtor".
Pensar como estamos ligados neste ciclo de água, terra e céu é curioso. Enquanto isso, outro leiteiro que conhecemos falava da transposição do rio se dizendo a favor, porque a transposição, afinal, seria só no final do rio e era um desvio muito pequeno. Pensei depois comigo mesma: "se para chuparmos um picolé dependemos também da água na roça e, se as grandes empresas leiteiras também dependem do pequeno produtor, será possível que tirar um pouco d'água do leito do rio não traz impacto algum?"
2ª - Abaeté – Após algumas caronas, chegamos em Dores do Indaiá. Esta foi uma das caronas mais atípicas da viagem: carro grande e confortável com ar condicionado, um senhor (acho que era engenheiro) de Belo Horizonte nos deixou no trevo perto da cidade. Aconselhou-nos a subir para a cidade caso escurecesse e não conseguíssemos carona e, ainda insistiu em nos dar R$20,00 para comermos. Tivemos um certo constrangimento e recusamos; porém, diante da oferta e da insistência, acabei pegando. Chegando a Dores do Indaiá, além de ser caro para dormir, a cidade não agradou. É uma dessas cidades abastadas do interior. Resolvemos continuar de ônibus mesmo até o destino que havíamos escolhido: Abaeté. Cozinhamos um macarrão com direito a salada e tudo mais. Eu só conseguia pensar: "se minha tia acha constrangedor que eu coma comida dentro do ônibus (é, no ano passado eu fiz muito isso...), imagina se ela me visse cozinhando no chão da rodoviária e lavando as verduras no bebedouro!!!"
Após o jantar, um pouco de música na rodoviária e fomos a Abaeté. Por lá, o Marcelo conseguiu um lugar barato para ficarmos com um teatrinho de sermos hippies e fazermos apresentações. Assim, fomos à praça com violão, triângulo, fantoche e bexigas para assumirmos o papel.
Na praça, ainda a iluminação de Natal com presépio, famílias e árvores iluminadas com bolas de luz. Uma praça muito bonita mesmo! Parecia até que os homens tentavam imitar a luz do céu com aquelas bolas e luzes de Natal. Caminhando um pouco mais, toda a moçada da cidade desfilando em frente aos carros com música em suas melhores produções: mulheres para todos os lados. Por fim, nos sentamos e fizemos um forró com o chapéu estendido. Nada de trocados. Nem mesmo as bexigas de animais funcionaram... com o cansaço, nos rendemos e voltamos para a hospedagem. O Marcelo cogitou tomar banho e voltar para a praça. Eu fui dormir. Por fim, ninguém saiu.
3 ª Morada Nova de Minas – Esta foi a cidade escolhida para o Ano Novo. Nada como virar 2007/2008 a beira de uma praia do São Francisco! Entretanto, a festa ficou na praça mesmo e a praia era um pouco (muito) distante. Ficamos hospedados numa pensãozinha na beira da praça e lá conhecemos Maria José, mineira de meia idade magrinha que era louca por crianças embora não tivesse filhos. Ela nos contou sobre sua infância e seus "traumas". Incrível como tem palavras que pegam, né?! Quando nos despedimos, ela perguntou se voltaríamos. Respondemos que não sabíamos, pois o futuro... ela percebeu que não voltaríamos e se despediu. Falei para ela não se esquecer do acordeom (ela tinha um sonho de aprender) porque ainda dava tempo.
Eu me senti muito bem acolhida nesta pensão, como se morasse lá. Havia uma cozinha com o fogão no centro e aquelas mesas de madeira compridas para comer na copa. Fora, um quintal grande com um pequeno jardim e horta. O quartinho era miudinho e eu fiquei bem ao lado da janela (eu prezo muito mesmo lugares com janelas).Nesta cidade a impressão é que todos se conhecem. Gosto do clima interiorano onde todos se cumprimentam nas ruas... e todos percebem que você não é da região. Fomos visitar a tal da praia a noite logo no dia em que chegamos. Bem longe mesmo... chegando lá, um breu total e um longuíssimo caminho de terra contornado pelas árvores. O céu? Cintilante com milhares de estrelas. Quando chegávamos a praia, cachorros correndo e latindo. Virei e calmamente fui voltando. Acabamos parando no meio do caminho para contemplar os astros. Nesta pensão, também estava hospedada uma mulher de Três Marias com a filha. Ela me contou que estava perseguindo o marido porque não confiava nele (ele trabalhava vendendo bebidas e petiscos na balsa). Ela já havia sido traída várias vezes e para onde ele ia, ela corria com a menina atrás. As vezes conversávamos e ela me pedia para ajudar com a menininha. No dia em que íamos a praia, eu a convidei. No fim, desistiu por causa do calor e ainda me pediu uma saia emprestada. Eu acabei emprestando mas depois fiquei um pouco ressabiada, com medo de estar sendo feita de boba. Felizmente, meu anjo da guarda faz plantão e ela me devolveu.
No dia da virada o Marcelo fez um som na varandinha da pensão e eu fiquei com o pandeiro dançando. Foi muito divertido. Acredito que 2007 acabou como deveria: bem. O pessoal de lá vivia falando que éramos muito animados. Foi um pouco difícil deixar este lugar... mas tínhamos que seguir viagem.
As estrelas... Queria compartilhar uma reflexão: uma vez li que quando olhamos o céu a noite, o que vemos são apenas fósseis, pois o tempo que a luz demora para nos atingir na Terra, equivale a milhares de anos terrestres, o que implica em dizer: as estrelas que sempre nos serviram de guia, inspiração, enigma, são vestígios de algo que já foi.... mas ainda acreditamos e nos deixamos por elas guiar! Guiamo-nos por algo que vemos, sentimos, mas não está mais lá: eis o mistério da fé!
4ª Pirapora – Não gostei muito de Pirapora. O primeiro impacto do rio é maravilhoso: isto sim é que era praia de rio!! Mergulhei de roupa e tudo e o fim do dia foi muito gostoso. Lá, o rio já começa a ficar grandinho e com uma certa correnteza. Havia uma faixa grande de areia e já comecei a ver conchas (!!). Acho que foi em Pirapora que resolvemos falar que éramos primos. Já estava enchendo a paciência ficarem perguntando se não preferíamos um quarto de casal... Primos. Cheguei até a escutar que parecíamos irmãos... muito engraçado... A cidade era meio grande e não me senti muito bem. O rio era bacana e pudemos ver o último barco a vapor que navegava pelo São Francisco. Todavia, os passeios eram só aos domingos e estávamos longe disso. Mais uma vez passamos um fim de dia e partimos logo cedo.
5ª Januária – Neste caminho Pirapora/Januária, foi preciso fazermos um desvio por dentro para chegar à cidade, já que as cidades ribeirinhas eram de acesso muito difícil. Fomos até Montes Claros, a cidade intermediária e, tomando um sorvete. A sorveteira nos viu consultar o mapa de estradas e perguntou onde íamos. Estávamos decididos a parar antes de Januária, em Pedras de Maria da Cruz. A escolha era simples: não queríamos cidades grandes. A sorveteira nos aconselhou a ficar em Januária e nos falou de seu sogro que alugava quartos por lá. Neste ínterim, conseguimos carona com um homem que marcou: Celso. Ele fazia entregas em supermercados e possuía um próprio, Rede Flores em São João das Missões. Nesta época eu estava obcecada pela idéia de assistir a uma folia típica de Reis. Celso contou que em sua cidade havia uma folia muito tradicional que seu avô participava, mas não acontecia mais. Ficou nos contando suas histórias e que já havia morado em outros cantos; contudo, gostava mesmo de Minas Gerais. Este foi um dos caroneiros que mais gostei.
Já em Januária um grande brasileiro: Pirapora. Ele auxilia na implementação do ECA nos pequenos municípios, afirmando que as crianças e adolescentes tem que ser prioridade absoluta das políticas públicas. Ele tem um programa em CD e "cutuca" as prefeituras chamando-as para estas questões além de auxiliar na implementação do Estatuto. Ou seja: ele ensina, abre e dá caminhos. Bonito isso né?!!! E o mais incrível é que na infância ele foi morador de rua em BH. Uma pessoa que viveu o que faz. A experiência faz toda a diferença nos trabalhos (...)
Adorei a cidade de Januária: ribeirinha, tem boa infra-estrutura sem perder o clima interiorano. Lá achei muito curioso o fato das mulheres todas andarem de salto alto. E digo mais: andam de bicicleta com salto alto, saia e guarda chuva! Isto tudo sem perder o charme...Verdadeiras equilibristas.
O rio é bem grande por lá e fiquei com medo de entrar na água, sem contar que as muriçocas comiam soltas literalmente. Então preferi apenas contemplar o fim de tarde a beira rio. Durante a noite, assistimos na praça a apresentação de “Reis dos Marinheiros” muito divertida.
A procura do "agito", como diria o Marcelo, encontramos um forró num restaurante perto do rio e acabamos entrando para dançar. Os forrozeiros tocavam muito em São Paulo e acabaram nos aplaudindo. Pedi aos forrozeiros para tocar "Riacho de Navio" e "Vida de Viajante", músicas pertinentes a viagem. Foi emocionante escutá-las e ainda mais dançá-las. O lugar estava meio vazio e, os poucos homens que dançavam ficaram um pouco constrangidos de dançarem comigo porque dançavam diferente do modo como estávamos acostumados. Contudo, eu falei que não havia problema, pois me adaptaria ao jeito deles. E é isso que me apaixona no forró: dançar de vários jeitos com diferentes pessoas compassados na música regional. Eta trem bão!!!
6ª Itacarambi– Esta cidade é muito bonitinha e completamente infestada de muriçocas. O dono do local onde dormimos era uma pessoa áspera e, na tentativa de convencê-lo a nos deixar cozinhar em seu fogão que compartilharíamos a comida, ele respondeu:"eu não como nada porque sou hipertenso... mas a cachaça está sempre aí".Vejam se dá para acreditar... isto tudo porque ele nos contou depois que já havia tido um AVC. Ao me aproximar mais em conversas, ele queria nos ajudar conseguindo um lugar para cantarmos e tocarmos para fazermos dinheiro, já que tínhamos nos auto-denominado "hippies" com o violão, pandeiro e triângulo. Obviamente acabamos deixando a idéia de cantar de lado.
Posso dizer que as duas noites que estivemos em Itacarambi foram noites quase em claro para mim. Eu não conseguia dormir devido as picadas e sons das muriçocas e nunca desejei tanto que a noite terminasse... na primeira noite estava tocando forró na rua, o que me fez desistir de tentar dormir no calor e nos zumbidos me dirigindo para rua. Entrei no forró já no final e fiz algumas amizades. Quando finalmente senti um soninho, voltei para o quarto e cochilei um pouco.
Durante o dia, não havia muito o que fazer, mas lá tinha acabado de acontecer um terremoto em dezembro, o que em muito assustava as pessoas. Muitos moradores estavam abrigados em escolas e, logo ao lado, existe o Parque Nacional do Peruaçú.
Eu queria ter visitado estes locais onde estavam abrigadas as pessoas, assim como o projeto Jaíba, uma "micro" transposição do São Francisco considerada, na região, um grande sucesso para os pequenos agricultores. No entanto, o calor era tão forte durante o dia, e ainda por não estar dormindo direito, não tive disposição de ir atrás disso.
Tentamos conseguir uma autorização para ir ao parque, muito famoso pelas cavernas repletas de pinturas rupestres. Contudo, ao "conseguirmos" a tal da autorização, acabamos nos envolvendo numa história meio torta entre a filha do fiscal do Ibama e o guia, o que acabou nos levando a desistir por falta de tempo, além de percebermos que isto tudo não podia acabar bem.
O casal de pais do guia coordena grupos de terceira idade na cidade, além de encabeçar comemorações. Fomos super bem recebidos por eles que após uma conversa fizeram uma roda de música conosco e seus filhos e ensinaram a música do Rio São Francisco fornecida por Dom Luis Cappio, o padre da greve de fome. Sabe um comentário curioso que escutamos acerca da greve de fome? "Minha nossa senhora, com tanta gente sem nada p comer, este homem em tem do bom e do melhor e deixa de comer..."
Participamos com este casal de um festa de Reis na casa de algumas pessoas: foi lindo! No interior, durante o período de reis (depois do Natal até dia 06/01, aproximadamente), realizam celebrações em homenagem aos Três Reis Magos. Desta forma, algumas casas são visitadas pelos "reis". A casa fica enfeitada com uma lapinha e apenas as mulheres permanecem dentro da casa entoando canções para o Menino Jesus. Após um período, os homens entram na casa juntamente com a "banda". Ela é composta por alguns homens com sanfona, caixa, e outros instrumentos, representando a chegada dos Três Reis Magos. Após um pouco de festa dentro da casa e cantoria religiosa, se escolhe um local onde se possa fazer uma roda e todos dançam o samba, se alternando dentro da roda. Nunca vou me esquecer daquelas mulheres na reza, senhoras de idade avançada, pulando e virando felizes dentro da roda de samba no quintal. É uma alegria muito genuína.

A polêmica transposição na voz dos ribeirinhos

A princípio pensamos em entrevistar as pessoas para podermos escrever um artigo sobre o imaginário da transposição, ou algo parecido. Mas perdemos a vontade de realizar entrevista formal e deixamos tudo como conversa informal mesmo. O compromisso ficou com o relato.
Conversando com as pessoas sobre a transposição do Velho Chico, consegui perceber algumas coisas. Em Minas Gerais, existem pessoas que não sabem ao certo do que se trata a transposição, falando:”é, escutei alguma coisa sim...”. Quando perguntei dizendo que era algo como construir canais para levar água do rio até uma região seca no Nordeste, as pessoas diziam:”não vejo nada de mal nisso... aqui tem tanta água, não vai fazer diferença tirar um pouco”. Ainda em Minas, há quem pense que se a transposição fosse feita mais perto da cabeceira, isto poderia ser um problema:”se fosse aqui no começo, acho que o rio podia secar, mas já que é lá mais no final, não tem problema não”. Lembro que em Itacarambi, o guia das cavernas do Peruaçú se dizia contra, devido aos impactos ambientais e pelo fato do rio já estar muito poluído e assoreado. Lá também havia gente a favor devido ao projeto Jaíba da região, uma micro-transposição que, segundo a população, era uma grande benfeitoria naquele local. Só posso concluir que a maioria dos mineiros, contando com os leiteiros de carona, tinham mais argumentos a favor da transposição. Um deles, em Bambuí, dizia que seria uma boa obra se fosse para beneficiar as pessoas da seca. Mas que o problema era se esta água iria até estas pessoas.
Já na Bahia e em Pernambuco, notei quase que unanimidade a favor do projeto, contando que a seca era muito brava na região. Na Bahia ainda encontrei pessoas contra, principalmente perto de Barra onde vive o bispo da greve de fome. As pessoas clamam pela vitalização já mais ao norte bahiano e receiam que o rio fique mais seco com a obra. Outros argumentos que escutei na Bahia foram:”esta água é uma água que vai se perder no mar; então, porque não levar para as pessoas que tem sede?”. Já um argumento contra dizia:”se o rio é assim, segue este curso, então não devemos mudá-lo. Se fosse para ser de outra forma, ele não teria este caminho. Acho que o homem não deve mexer no que Deus fez”. Um paraibano que nos deu carona dizia ser a favor porque conhecia o homem que tinha escrito o projeto e já tinham muitos estudos sobre a transposição; desta forma, com certeza eles não fariam algo que prejudicasse a região, já que ele era “tão estudado”. Outra pessoa, no ônibus de Sento Sé a Sobradinho, contava que mesmo que a água fosse beneficiar os grandes latifundiários, o pequeno produtor também morava nestas grandes propriedades e, com a água, poderia ter a sua rocinha. Outro caroneiro foi reticente dizendo:”esta é uma obra eleitoreira como todas as outras. Tenho certeza que vão começar e nunca será terminada”. A líder regional do MST perto de Igarité se dizia “como movimento e pessoalmente” contra a transposição,haja vista que só iria beneficiar os grandes proprietários.
Na região mesmo da transposição, em Cabrobó, a seca é impressionante. Não dá para acreditar que as margens do rio é quase um deserto. Nesta região, principalmente com quem conversei em Cabrobó, todos discutiam a própria greve de fome do bispo, revoltados com tal atitude:”com tanta gente precisando desta água, vem este homem fazer isto para impedir”. Uma senhora dizia que ele esteve por lá fazendo greve e sabia que na realidade, durante a noite “ele tomava umas e outras”. Fiquei surpresa com estas colocações, mas sinceramente, entendo o porquê da população ser tão radicalmente a favor da transposição. Contudo, os índios reivindicam a divisão de terras e são contra a transposição, pela questão anterior de demarcação de território.
Já em Sergipe e Alagoas, difícil é encontrar quem seja a favor. É bonito de se ver como a população fala do rio e se envolve com suas questões, dizendo:”O nosso rio está morrendo... a balsa agora tem que dar a volta para passar, senão ela fica presa, de tão baixo que está o rio. Se acontecer a transposição, ele vai secar de vez”. Os pescadores também falam que já podiam pescar peixes de água salgada na região de Penedo ou antes, porque com a baixa vazão, o mar estava invadindo o rio. Por estas bandas, todos dizem “revitalização sim, transposição não”. Até mesmo vi alguns carros em Piranhas com adesivos escritos.
Da nascente em Minas até perto de Barra, a maioria é a favor, salvo exceções – geralmente pessoas mais engajadas com questões ambientais. De Barra até Sobradinho, as opiniões são mais heterogêneas e alguns já apontam para a questão da poluição das águas e assoreamento do rio. De Sobradinho até Paulo Afonso, a maioria é a favor, o que até atribuo a própria questão climática da região. Alagoas e Sergipe, a maioria é contra, ou não se pronunciam tanto sobre a transposição em si, mas falam em revitalização.

Organizando o cotidiano

Caronas: ao longo da viagem percebemos que o ideal era pegar as caronas pela manhã e em dias de semana. Passamos a preferir deixar o fim de semana para descanso em alguma cidade aprazível com a possibilidade de acordar mais tarde e não cozinhar. No início, fiquei com um pouco de vergonha de ficar pedindo carona, mas depois, me sentia totalmente a vontade exercitando a famosa "cara-de-pau". Algumas vezes quase parava o carro acenando com ar desesperado. Percebíamos já quem nos daria e quem não nos daria carona, acontecendo inclusive algumas previsões fantásticas nestas especulações. Além do horário e dia da semana bom para se pegar carona, também tem o local onde você pede: o ideal é ficar na saída da cidade, ou em algum trevo próximo, alguns metros depois da lombada. Desta forma, a pessoa pode te ver em baixa velocidade e se tem a possibilidade de dramatizar. Arrumávamos também as malas de modo a esconder parte das coisas, deixando o violão sempre a frente. As roupas também influenciam na carona.
Adorei ter podido viajar de carona e, obviamente, não aconselho mulheres sozinhas a o fazer, pois pode sair "muito caro". Mas foram elas que nos fizeram economizar (e muito!!) durante o percurso além de conhecer as pessoas em seu cotidiano.

Comida: Durante a viagem levamos duas sacolas para carregar as comidas fora da mochila, além de duas panelas, tupwares, talheres, caneca e o fogareiro. Se o dia era de carona, acabávamos fazendo um sanduíche para comer na estrada e procurávamos fazer comida a noite: sopa, macarrão, salada ou arroz com lentilha e soja. Sempre íamos ao supermercado e feiras comprar frutas e legumes. Geralmente não cozinhávamos no final de semana como uma recompensa; e outras dividíamos um PF (como assim dividiam o PF??) Isso mesmo, quem me conhece e sabe o quanto eu como, imagina que eu passava fome... mas na verdade, o calor era tão grande que não conseguia comer muito. Queríamos mais era tomar água, picolé ou então, o que realmente nos tornamos sócios: geladinho!!
O fogareiro, logo no início, ficou para emergências, já que o gás que o Marcelo levou foi se acabando. Desta forma, procurávamos negociar nos lugares onde dormíamos para utilizar o fogão, o que era uma tarefa bem árdua na maioria das vezes. Inclusive tiveram momentos que comemos muita salada para não precisarmos do fogão e equilibrar a alimentação. No fim da viagem eu não agüentava mais comer as mesmas coisas: arroz com lentilha, macarrão com molho de tomate, soja e cenoura. Ah, sempre que fazíamos macarrão, sobrava molho e a próxima refeição era?!!! Adivinhem... angú com molho!!!! As saladas também sempre com os mesmos legumes: repolho, tomate, cenoura, beterraba, pepino e pimentão. Outras hortaliças são muito difíceis de se encontrar, pois no interior, verdura (alface) é só uma vez por semana quando o caminhão traz e durante a semana só o que é mais resistente sobra... e naquele estado! Realmente um vegetariano sofreria por essas bandas.
O que encontramos de mais abundante para comer, de mais típico, foi o feijão de corda, arroz, bode, cuzcuz, muita manteiga, macarrão e farinha. Dentre as frutas, muita manga, seriguela, umbu, pitomba, jaca e caju.
No norte de Minas experimentei o piqui, que é uma espécie de fruta que as pessoas usam para "dar cheiro" principalmente no arroz. Ela é bem oleosa e laranja. Depois de usá-la para dar gosto na comida, as pessoas comem a massinha laranja em volta e deixam secando. Então, quebram-na e de dentro tiram uma castanha com a qual fazem farofa, paçoca.... Dizem que piqui é bom para memória: você fica arrotando o dito cujo o resto do dia!!! Olha, sei que eles usam tanto, tanto nesta região, que só de lembrar o gosto, já sinto uma indigestão.... ai, ai... mas há quem goste e até adore!!!

Divisão de Tarefas: Nos organizamos para realizar uma viagem justa: sempre tirávamos mais ou menos a mesma quantidade de dinheiro e, em cada momento um pagava as coisas e contabilizava. Assim, um ficava devendo para o outro e íamos alternando e quitando sucessiva e igualmente. Isso foi mais para facilitar e não ter que ficar na hora de pagar os dois tendo que trocar o dinheiro e dividir na hora. Foi um bom esquema no final.
Geralmente o Marcelo ia procurar o lugar para ficarmos quando chegávamos nas cidades enquanto eu cuidava das coisas. Contudo, em alguns momentos, eu também procurava.
Quanto a comida, quando era para ir para o fogão, geralmente eu ia. A louça alternávamos e normalmente os dois cortavam as verduras. Quando saíamos, geralmente eu levava a sacola com os lanches e água. Ambos pediam carona.